Dois novos trabalhos de Gabriel Mascaro lançados em Brasília

  • Autor: André Dib
  • Veículo: www.andredib.com
  • Data: 24/09/2012
  • Texto: Brasília (DF) – Com o longa “Doméstica” e o curta “A onda traz, o vento leva”, o pernambucano Gabriel Mascaro entra para restrito rol de realizadores a competir com dois filmes em um mesmo festival de cinema. Nobres precedentes: Werner Hezog, que em 2009 esteve em Veneza com “Vício frenético” e “My son, my son, what have ye done”; e Richard Linklater, que em 2006 exibiu em Cannes “Fast food nation” e “Waking life”. Não será surpresa se Mascaro sair premiado do festival. Nos últimos anos, ele tem chamado atenção pela concepção de seus filmes, que investigam linguagem e formas de representação, principalmente por apagar a fronteira entre documentário e ficção. Este ano, Brasília reativou esses escaninhos há tanto tempo em desuso que ficaram enferrujados. E colocou os filmes de Mascaro na competição de documentários. Exibido na última sexta-feira (21), “Doméstica” é um filme indispensável para compreender o nosso país. Ele instiga na medida em que traz para a consciência os mecanismos de dominação e submissão entranhados nas relações mais íntimas, as do núcleo familiar. Para escapar do generalismo, a equipe de Mascaro entregou o equipamento de filmagem na mão de jovens, para que façam imagens sobre as empregadas que trabalham nas suas casas, que moram em diferentes cidades do Brasil: Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus. Apontadas como um problema em seu longa anterior, “Um lugar ao Sol”, questões de classe foram diluídas ao tirar o foco sobre o poder aquisitivo dessas famílias, que vão desde a classe A até moradores de uma favela. O problema da servidão ultrapassa a realidade econômica, é uma herança cultural, reproduzida inclusive pela parte oprimida. O filme ilustra isso exemplarmente ao apresentar a empregada de uma empregada. Questões de gênero também são superadas quando o filme traz para a discussão a figura do empregado doméstico, que lava pratos, faz comida e cuida das crianças enquanto a patroa vai pra rua trabalhar. Em comum está o fato de serem emocionalmente fragilizados, trabalhadores com vidas marcadas por tragédias pessoais. Nesse sentido, a imagem mais forte talvez seja a da empregada obesa que desenvolve hábitos noturnos e é flagrada pela câmera dormindo de joelhos no chão da sala, com o rosto enterrado no sofá. Outro ponto interessante de “Doméstica” está na forma como os jovens produzem o material bruto, editado posteriormente por Mascaro e seu montador, Eduardo Serrano. É curioso observar como eles se apresentam e se relacionam com a câmera, propondo e dramatizando situações como um número de dança, a empregada que se auto-filma cantando uma música enquanto dirige e outra que prepara a comida kosher e depois participa de um shabat da família judia para quem trabalha. A afetividade entre jovens e serviçais, que no discurso vivem como “parte da família”, permitiu ao filme expor mecanismos e contradições na sua intimidade. Com que em um cativeiro, o “empregado” celebra o Natal junto com os demais; em outro momento, a patroa conta a história dele, ele ao lado, de o tempo todo de cabeça baixa. Mãe e filha à mesa, mãe pede garfo e faca à empregada. O tempo entre o pedido e a entrega sufoca. É um intervalo de silêncio que diz mais do que qualquer tratado sociológico. Com pretensões artísticas, o rapaz do último episódio demonstra certo domínio sobre o resultado, ao contar a dura história de sua empregada, neta de escravos que cresceu como amiga da futura patroa. A negociação para que ela conceda entrevistas, desde a assinatura do termo de uso de imagens, se dá de forma absolutamente senhoral. Responder a entrevista e permitir que a câmera invada o cubículo em que vive se tornou uma violência a mais, entre as tantas permitidas pela naturalidade bovina com que a maioria dos brasileiros lidam com o assunto. Durante a coletiva, Mascaro disse que o objetivo do filme é trazer para o campo estético aquelas pessoas que observaram o jovem por uma vida inteira. “Minha presença está na ressignificação do olhar, na dimensão deste encontro na montagem. Por envolver uma negociação constante da imagem, antes de tudo existe uma dimensão ética na relação de cada jovem com sua empregada e o filme se apropria dessa dimensão para tensioná-la. Para a empregada, pode ser uma obrigação a mais ou então a possibilidade de ativar outra forma de subjetividade”. O diretor nega a pretensão de dar conta de uma realidade maior do que a das pessoas que apresenta. “O filme seria sobre cada relação estabelecida e a montagem em blocos, para evitar comparação entre as personagens”. Mascaro também conta que “Doméstica” surgiu após a chegada de sua esposa, a produtora inglesa Rachel Ellis. “Quando ela chegou ao Brasil teve muitos estranhamentos e o que para mim não era uma questão e virou grito”. A presença de Rachel também foi decisiva para a realização de “A onda traz, o vento leva”, parceria com uma instituição espanhola interessada na temática do HIV. O filme nasce do encontro do casal com Márcio Santana, surdo-mudo que aceitou participar do projeto se auto-ficcionando, sob o nome de Rodrigo. O cinema surge da comunicação não-verbal de Rodrigo com sua família, amigos e profissão - interessa o fato dele trabalhar consertando equipamentos de som. “Rachel me despertou para cultura surda há cinco anos”, diz Gabriel. Foi me tomando a força dos gestos, a relação corporal e a incomunicabilidade com o mundo do ouvinte. Em vez de mais um filme sobre o HIV, tratamos da corporalidade”.

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